Há mais de 3 anos que viajamos por Portugal nesta busca incessante por produtos e histórias. Gostamos de perceber que já conseguimos definir uma região ou um destino pelos respetivos produtos. Sabemos hoje que esta viagem nunca terá fim. E ainda bem.
Há uma característica muito portuguesa, muito gira, que é quando falamos de determinado local, ou determinado percurso, poucos são os que não dizem onde é que se pára para comer. Não só porque em Portugal se pode comer bem em todo o lado, mas também pelo orgulho que temos na nossa gastronomia.
Nesta época do ano, muitas destas paragens e/ou destinos, são para comer um grande cozido, o que faz todo sentido, tendo em conta o tempo frio. Mas há muito mais para além do clima, que nos leva a comer um cozido nesta altura. Por estar frio, e porque antigamente não havia refrigeração, esta é a época ideal para fazer a matança. Da matança, fazemos a charcutaria (que depois era consumida durante boa parte do ano). A charcutaria era fumada nas lareiras que aquecem as casas, e aproveitando o fogo das lareiras as panelas estavam sempre ao lume, em cozeduras lentas de carnes e caldos. A humidade que saía destas grandes panelas de ferro era perfeita para evitar que a charcutaria secasse em demasia. De muitas destas panelas, saía um cozido.
É importante refletir sobre o parágrafo anterior, e devem saber que ainda há muita produção feita deste modo, cumprindo ainda assim as regras apertadas das entidades reguladores para a higiene e segurança alimentar. Em muitos dos produtos que temos n´A Praça, pode ler-se na etiqueta “carne de porco; sal; fumo de lenha de carvalho”. Nada mais.
Voltando ao cozido. Nós partilhamos da ideia de que esta receita nasceu nas nossas terras, e que possa ao longo da história ter sido influenciado por outras gastronomias, da mesma forma que influenciou certamente algumas variantes do Pot-au-Fau Francês ou do Cocido Espanhol. Era um prato de produtos conservados e produtos disponíveis em épocas menos produtivas. É um prato “simples” feito a partir de muito pouco. A primeira receita escrita, em Portugal, foi publicada no livro “Arte da Cozinha”, da autoria de Domingos Rodrigues, em meados do século XVII. Neste documento, é mencionado um prato denominado “olla podrida” – versão espanhola do “cozido à portuguesa”. Ora, sendo ele cozinheiro da casa real, havia uma tendência abrupta para copiar o que se comia nas outras casas reais europeias. Não significa minimamente que não se comessem “cozidos” em Portugal.
Não queremos falar em cozido à portuguesa sem deixar de falar no Chef Nuno Diniz. Além dos famosos e deliciosos cozidos que faz, aborda o tema de duas perspetivas que não poderiam ser mais interessantes e, na nossa opinião, muito assertivas:
“Mas o bom gosto e o bom senso decidiram voltar a iluminar-me (…) e assim, desde 2006 (ou 2007?) comecei a fazer três vezes por ano aquilo que a generalidade imensamente maioritária das pessoas chama normalmente “Cozido à Portuguesa”. Tal designação (…) não é na minha opinião minimamente descritiva das brilhantes originalidades (incluindo superstições, vocabulário, tradições, métodos, etc) que se abrigam por baixo de tal enorme chapéu.”
Ainda, “Neste caminho, felizmente sem fim à vista, continuo a encontrar e a surpreender-me com a variedade portentosa das comidas das nossas regiões. Até, e diria mesmo, acima de tudo, com as mais simples, e assumidas como conhecidas de ginjeira por quase todos”
Não há uma fronteira onde acabe um cozido de uma região e comece outro. Não há receitas nem fórmulas, e embora seja um prato “simples”, a simplicidade dá muito trabalho. Há, de facto, um Cozido à Portuguesa? Não, mas cada uma das suas maravilhosas variações aquece o corpo e a alma.
1. Nuno Diniz, Entre Ventos e Fumos, 2019, Bertrand Editora