O responsável por essa dor de cabeça que na manhã seguinte roça o arrependimento é, única e exclusivamente, o álcool. Os demonizados sulfitos não provocam dor de cabeça. Acontece que, tal como o álcool, os sulfitos, depois de chegarem ao estômago, são absorvidos pela corrente sanguínea. Quando ingeridos em demasia, são os sulfitos que vão ter prioridade nesse percurso anatómico; eles provocam uma espécie de engarrafamento à entrada da via sanguínea, deixando o álcool em "fila de espera". Nesse intervalo, ainda sem percepcionar o efeito do álcool no cérebro, continuamos a beber o 3º e o 4º copo como se ainda estivéssemos no 1º, e nesse caso, quer a bebedeira, quer a ressaca, em vez de nos tomarem paulatinamente, abalroam-nos à bruta. Pois bem, em teoria, quando ingerimos vinhos com menos sulfitos, o álcool é absorvido mais depressa, o que coloca o nosso corpo em estado de alerta mais cedo - ainda durante a ingestão das bebidas - e pode levar-nos a tomar algumas precauções, como beber água, beber mais devagar, ou até parar de beber. No entanto, sinto muito desiludir-vos, mas não é por estarem preocupados com a nossa enxaqueca que os produtores de vinho decidem adicionar, ou não, sulfitos. Talvez alguns deles tenham visto potencial comercial nesse caráter antirressaca, mas não é aí que reside o cerne do debate dos sulfitos. Eles estão-se nas tintas para a nossa dor de cabeça. Nas tintas e nas brancas.
Antes de tentar perceber o que leva o produtor a não adicionar sulfitos, talvez seja interessante perceber o que o leva a adicioná-los. Fazemo-lo há milhares de anos; desde os romanos, ainda que de forma artesanal, e a partir do início do século XX, de forma mais industrializada. A função dos antioxidantes na alimentação é prolongar o tempo de vida do alimento. Os sulfitos são antioxidantes; formam-se através do contacto de qualquer superfície líquida com dióxido de enxofre. Para além do enxofre ser o 16º elemento da tabela periódica e, portanto, abundar em nosso redor, as vinhas cultivadas são tratadas com enxofre ao longo do ano, e essas partículas de enxofre são transportadas para a adega na altura em que se transforma as uvas em líquido: a vindima. Assim, podemos concluir que os vinhos contêm sempre sulfitos, pois no ambiente da adega existe sempre dióxido de enxofre que mais cedo ou mais tarde entrará em contacto com o vinho. Acontece, porém, que o processo acima descrito pode ser sintetizado em laboratório, e o produto resultante dessa sintetização - conhecido como sulfuroso - pode ser adicionado a um vinho que já iria produzir sulfitos naturalmente. Os produtores de vinho utilizam este produto tanto para retardar a inevitável oxidação, como para controlar o processo fermentativo, conduzindo a levedura que pretendem selecionar, e mitigando o desenvolvimento de bactérias.
Apesar do objetivo da adição de sulfuroso ser preservar o vinho, não podemos afirmar que o objetivo da não adição seja estragá-lo... Pelo contrário. Os produtores que não adicionam sulfuroso acreditam que o processo de seleção de leveduras empobrece o vinho, reduz a sua complexidade, e dilui as subtilezas de uma fermentação mais livre. Contudo, eles não deixam de se preocupar com o desenvolvimento de bactérias nem com o retardamento da oxidação. Para evitar o desenvolvimento de bactérias são absolutamente rigorosos com a higiene da adega. Já para retardar a oxidação, tentam utilizar em pleno os antioxidantes naturais que o vinho produz: o ácido tartárico presente na polpa da uva é um antioxidante natural; o tanino presente nas peles e no engaço é um antioxidante natural; os sulfitos gerados espontaneamente durante o processo de fermentação, são antioxidantes naturais. Manipular toda esta matéria orgânica sem recurso a químicos de laboratório requer muita experiência e um profundo conhecimento da matéria-prima.
A maior parte dos nossos produtores opta por adicionar doses homeopáticas de sulfuroso, muito abaixo dos limites estabelecidos pela lei ou por qualquer agente certificador. Contudo, alguns deles optam mesmo por não adicionar sulfitos em nenhum momento do processo. Estão num compromisso intrincado, entre a procura de um vinho mais puro e a difícil tarefa de preservá-lo sem recorrer a químicos de síntese. Conheça alguns desses vinhos.