A repetição do gesto

A repetição do gesto

Praca SiteOct 5, '22

A transformação do açúcar em álcool faz parte de um processo químico cujo encadeamento pode levar esse mesmo álcool a desdobrar-se em ácido acético, caso a exposição ao oxigénio seja excessiva. O trabalho de um produtor de vinho é transformar o sumo de uva em vinho, e evitar que esse vinho se transforme em vinagre. Esta é a missão simplificada. A missão transcendente é engarrafar o espectro de um determinado lugar, e a memória de um determinado ano, mas isso implica muitos anos de repetição. Já la vamos…

Durante onze bucólicos meses, o viticultor dedica-se a cuidar de plantas, tentando concentrar os nutrientes numa quantidade restrita de bagos de uva que se querem sãos. Ao longo desses onze meses, ele alimenta a terra, ele poda as plantas para conduzir a riqueza da seiva até aos bagos, e aplica tratamentos para evitar a proliferação de fungos que causam doenças na vinha. De vez em quando, o viticultor ausenta-se do campo para fazer breves aparições em feiras, convenções e wine bares, sempre preocupado com a vinha. É muito engraçado conversar com produtores de vinho que estão longe de casa, porque quando está a chover eles estão preocupados com a chuva, quando está calor eles estão preocupados com o sol. O stress da cidade, da poluição sonora, do horário do último comboio ou da hora de ponta na segunda circular, pode parecer um chá das cinco com biscoitos de manteiga, se pensarmos que o stress de um produtor de vinho é causado por um agente sobre o qual ninguém tem o mínimo controle: as condições atmosféricas. Contudo, ao cabo de onze meses, estes homens e mulheres embevecidos no esplendor das suas uvas salubres que mereceram todos os cuidados, ainda correm o risco de espremê-las e vê-las transformarem-se em vinagre se não se puserem a pau.

O mês que antecede a vindima é um lufa-lufa na adega para ganhar espaço de armazenamento de forma a poder receber a uva nova. Não romantizemos essa coisa do tempo de estágio perfeito em busca do equilíbrio entre aromas primários e terciários: o vinho, normalmente, é engarrafado no momento em que é preciso arranjar espaço para entrar o vinho do ano seguinte. Depois de uns tempos em garrafa, o produtor prova, reprova, desprova e aprova. Uma das tragédias possíveis (leia-se prováveis) na vida de um produtor de vinho, é retirar a rolha, servir um copo, beber um trago, e constatar que a coisa não correu lá muito bem… E sabem quando é que ele vai poder corrigir o erro possivelmente identificado na elaboração do vinho do ano passado? Só no ano seguinte. Trezentos e sessenta e cinco meticulosos dias depois. Muitas profissões exigem a proeza da repetição do gesto, mas não conhecemos assim tantas que condenem o artesão a memorizar as minúcias desse gesto, e só poder fazer melhor 12 meses volvidos.  

Durante o mês das vindimas, algumas aldeias habitualmente desertas e demograficamente envelhecidas, regozijam-se da presença de jovens de várias proveniências e propósitos. Uns estão a aprender o ofício, outros estão a ganhar uns trocos, outros ainda, procuram, por um dia que seja, livrar-se da folha de cálculo do Excel e da rotina ensimesmada do escritório, e há sempre o sommelier estrangeiro à procura de vestígios do very typical foot trodden, a mais bela e inexplicável tradição portuguesa de besuntar as pernas em mosto, em vez de triturar as uvas com uma máquina. Dito isto, os velhos, os nobres guardiões da repetição do gesto, juntam-se a esta fauna dantesca, não só para apanhar a uva, mas, sobretudo, para fazer o que fazem melhor: esparramar ensinamentos de vinho e de vida. Sobretudo de vida. Ensinam-nos a respirar. Ensinam-nos a continuar. Ensinam-nos a ter paciência. É a eles que dedicamos esta nossa breve homenagem à vindima. Aos velhos de todos os séculos que tiverem a sorte de envelhecer, a perseverança de esperar, e a amabilidade de nos mostrar como se faz.